sábado, 6 de fevereiro de 2010

Declaração de intenções

Eu casualmente conheci Pacheco. Tenho presente, como num resumo, a sua figura e a sua vida. Pacheco não deu ao seu País nem uma obra, nem uma fundação, nem um livro, nem uma ideia. Pacheco era entre nós superior e ilustre unicamente porque "tinha um imenso talento". Todavia, meu caro sr. Mollinet, esse talento, que duas gerações tão soberbamente aclamaram, nunca deu, da sua força, uma manifestação positiva, expressa, visível.O talento imenso de Pacheco ficou sempre calado, recolhido, nas profundidades de Pacheco!. Constantemente ele atravessou a vida por sobre eminências sociais; deputado, diretor-geral, ministro, governador de bancos, conselheiro de Estado, par, presidente do Conselho - Pacheco tudo foi, tudo teve, neste País que, de longe e a seus pés, o contemplava, assombrado do seu imenso talento.(...)Este talento nasceu em Coimbra, na aula de Direito Natural, na manhã em que Pacheco desdenhando a sebenta, assegurou que "o século XIX era um século de progresso e de luz". O curso começou logo a pressentir e a afirmar, nos cafés da Feira, que havia muito talento em Pacheco: e esta admiração cada dia crescente do curso, comunicando-se, como todos os movimento religiosos, das multidões impressionáveis às classes raciocinadoras, dos rapazes aos lentes, levou facilmente Pacheco a um "prêmio" no fim do ano.(...)Logo na estrelada noite de Dezembro em que ele, em Lisboa, foi ao Martinho tomar chá e torradas, se sussurrou pelas mesas, com curiosidade: "É o Pacheco, rapaz com imenso talento!" E desde que as Câmaras se constituíram, todos os olhares, os do governo e os da oposição, se começaram a voltar com insistência, quase com ansiedade, para Pacheco, que, na ponta de uma bancada, conservava a sua atitude de pensador recluso, os braços cruzados sobre o colete de veludo, a fronte vergada para o lado como sob o peso das riquezas interiores, e os óculos a faiscar...Finalmente uma tarde, na discussão da resposta ao discurso da Coroa, Pacheco teve um movimento como para atalhar um padre zarolho que arengava sobre a "liberdade". O sacerdote imediatamente estacou com deferência; os taquígrafos apuraram vorazmente a orelha: e toda a Câmara cessou o seu desafogado susssurro, para que, num silêncio condignamente majestoso, se pudesse pela vez primeira produzir o imenso talento de Pacheco. No entanto Pacheco não prodigalizou desde logo os seus tesouros. De pé, com o dedo espetado (jeito que foi sempre muito seu), Pacheco afirmou num tom que traía a segurança do pensar e do saber íntimo: "Que ao lado da liberdade devia sempre existir a autoridade"!(...)Não volveu a falar a falar durante meses - mas o seu talento inspirava tanto mais respeito quanto mais invisível e inacessível se conservava lá dentro, no fundo, no rico e povoado fundo do seu ser. O único recurso que restou então aos devotos desse imenso talento (que já os tinha, incontáveis) foi contemplar a testa de Pacheco.(...)A testa de Pacheco oferecia uma superfície escanteada, larga e lustrosa. E muitas vezes, junto dele, conselheiros e diretores-gerais balbuciavam maravilhados:"Nem é necessário mais! Basta ver aquela testa!"

Eça de Queiroz

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